sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Miracle On Ice (Jogos Olímpicos de Inverno de 1980)

por Paulo Neto

A história acabaria por recordar os anos 80 como a década do triunfo do capitalismo americano e do colapso do comunismo. No entanto, quando os anos 70 se despediram dando lugar a essa nova década, a previsão de que a mesma iria acabar com a América em alta e o Muro de Berlim derrubado parecia quase inconcebível. Com o seu poderoso exército, as suas nações-satélites e estabilidade política, a União Soviética parecia levar vantagem no xadrez da Guerra Fria enquanto os Estados Unidos estavam a braços com diversas crises, da recessão financeira aos reféns americanos no Irão, parecia que nada estava a dar certo para a América. Ainda por cima, com o presidente Carter a decretar um boicote aos Jogos Olímpicos de Verão de 1980 em Moscovo devido à presença soviética no Afeganistão, a única oportunidade dos americanos sentirem algum orgulho no campo desportivo estava nos Jogos Olímpicos de Inverno nesse mesmo ano, a ter lugar em casa, em Lake Placid.
Mas ao contrário dos desportos de Verão, na altura os Estados Unidos não eram das maiores potências de desportos de Inverno, onde pontificavam as nações nórdicas e leste-europeias, estas últimas beneficiando do estatuto de "amadores-profissionais" dos seus atletas, que no papel eram amadores mas na realidade eram pagos pelo Estado. Era o caso da equipa de hóquei no gelo da URSS, composta teoricamente por "estudantes" e "militares" mas que na prática se dedicava exclusivamente à actividade desportiva, e que dominava então a modalidade de forma esmagadora ao passo que os hoquistas profissionais da Liga Americana estavam impedidos de competir nos Jogos Olímpicos, pelo que as equipas olímpicas americanas eram habitualmente formadas nos circuitos universitários. Mas no dia 22 de Fevereiro de 1980, uma jovem, inexperiente e desfavorecida selecção americana alcançou um feito impensável que entrou para o imaginário do país e que muitos americanos apontam como tendo sido o ponto de viragem na recuperação do orgulho americano e na revolução socio-cultural dos anos 80 que acabaria por ser decisiva na vitória da Guerra Fria.




Os 13.ºs Jogos Olímpicos de Inverno decorreram de 13 a 24 de Fevereiro de 1980 em Lake Placid. Esta pequena cidade montanhosa do estado de Nova Iorque já tinha acolhidos os Jogos de Inverno de 1932, mas 48 anos depois o evento tinha ganho proporções bem maiores, além das possibilidade organizativas de uma cidade tão pequena (cerca de 2500 habitantes). Houve vários problemas de logística desde espectadores que esperaram horas no gélido frio pelos transportes para os diferentes locais de competição à impossibilidade de não se poderem comprar bilhetes por vender porque as bilheteiras estavam em locais onde só aqueles que já tinham bilhetes podiam aceder! Os atletas também fizeram várias queixas às condições da Aldeia Olímpica, que mais tarde iria ser convertida numa prisão.
1072 atletas de 37 países, incluindo a União Soviética e seus aliados, competiram em 10 disciplinas de Inverno. A  RDA foi o país que conseguiu um maior número de medalhas e a URSS um maior número de ouros, mas as seis medalhas de ouro dos Estados Unidos acabaram por ser dois grandes motivos de orgulho nacional.



O patinador de velocidade Eric Heiden, que prestara o juramento olímpico na cerimónia de abertura, dominou toda a competição vencendo as cinco provas masculinos (500m, 1000m, 1500m, 5000m e 10000m), tornando-se no primeiro atleta a ganhar cinco medalhas de ouro individuais em Jogos Olímpicos (quer de Inverno, quer de Verão). Heiden virou-se depois para o ciclismo e chegou a participar na Volta à França de 1986. A sua irmã Elizabeth também ganhou uma medalha de bronze nos mesmo Jogos, na prova de 3000m femininos.



E depois houve a inacreditável história da equipa americana de hóquei no gelo. Herb Brooks, que fez parte das equipas olímpicas americanas de 1964 e 1968 (e que falhou por pouco a selecção olímpica campeã em 1960), foi o seleccionador que teve a hercúlea tarefa de transformar uma equipa jovem (a idade média rondava os 22 anos) e inexperiente num colectivo capaz de ombrear com as maiores equipas do momento. Nove dos vinte jogadores eram da equipa da Universidade do Minnesota, treinada por Brooks. Conhecido como "o Khoimeni do gelo", Brooks levou a cabo um rigoroso método e forte disciplina para criar a coesão na equipa rendilhada. Um dos seus métodos de selecção foi um questionário psicológico de 300 perguntas para avaliar a capacidade de resolução dos jogadores sob pressão. 




Mas as coisas não estavam fáceis, até porque na primeira fase os Estados Unidos mediam forças com as mais fortes selecções da Suécia e da Checoslováquia. No primeiro jogo, a Suécia ganhava 2-1 a um minuto do fim mas Brooks arriscou em abdicar do guarda-redes para colocar em jogo mais um avançado. A 27 segundos do fim, um golo de Bill Baker a 55m da baliza para o jogo terminar em empate. Contra a Checoslováquia (7-3), a Noruega (5-1) e a RFA (4-2), os Estados Unidos começaram o jogo a perder mas acabariam por assegurar a vitória. Aliás, de todos os sete jogos do torneio, foi apenas contra a Roménia que os Estados Unidos marcaram o primeiro golo. 
Com o segundo lugar do grupo, os Estados Unidos apuraram-se para a poule de atribuição das medalhas com Suécia, Finlândia e União Soviética. Uma vez mais, os americanos empataram 2-2 contra a Suécia. Mas as expectativas estavam ao rubro no jogo com a URSS, com o recinto de 8500 lugares totalmente lotado e repleto de bandeiras americanas. 

Em princípio, este jogo parecia um confronto entre Davids americanos contra Golias soviéticos. Para terem uma ideia, entre 1964 e 1976, a União Soviética ganhou os quatro torneios olímpicos, vencendo 27 dos 29 jogos disputados, com 175 golos marcados e apenas 44 sofridos. E na preparação para os Jogos de 1980, não só esmagaram 10-3 a selecção olímpica americana num jogo de exibição como também ganharam à equipa all-star da liga profissional americana! Além disso, a URSS vinha de cinco vitórias fáceis no seu grupo. O treinador soviético estava tão confiante que prescindiu do guarda-redes Vladislav Tretyak (tido como um dos melhores guarda-redes de sempre da história do desporto) por Vladimir Malyshin no início da segunda parte. E para não destoar, a URSS marcou primeiro e vencia por 3-2 à entrada para a 3.ª parte. 




Mas nesse dia 22 de Fevereiro de 1980, com toda a nação já a par do percurso da equipa americana e acompanhar o jogo pela televisão (que curiosamente não foi transmitido em directo), o destino pareceu estar do lado das estrelas e listras. Animados por só estarem a perder por um golo a 20 minutos do fim, os americanos sentiam que a reviravolta era possível. E assim foi. Mark Johnson empatou, o capitão Mike Eruzione virou o marcador e o guarda-redes Jim Craig defendeu todos os contra-ataques soviéticos (39 defesas durante todo o jogo) até ao apito final. Ao que o comentador Al Michaels exclamou "Acreditam em milagres? SIM!" E assim acontecia o "Miracle On Ice" diante dos olhos de toda a América, eufórica por tão grande proeza no meio de tanta crise. Ainda hoje, tal como o assassinato do Kennedy e o 11 de Setembro, há quem pergunte nas terras do Tio Sam: "Onde é que estavas durante o Miracle On Ice?"



No entanto, tudo ainda estava a aberto. Dois dias mais tarde, havia o jogo final contra a Finlândia e uma derrota significava ainda a vitória da URSS e o terceiro lugar para os Estados Unidos. E os finlandeses estavam interessados em estragar a festa pois se perdessem ficavam fora das medalhas. E uma vez mais, os Estados Unidos entraram no terceiro tempo em desvantagem (2-1). Mas golos de Phil Verchota, Rob McClanahan e Mark Johnson fixaram o resultado em 4-2 e o ouro olímpico ia para os Estados Unidos. Enquanto os seus colegas abraçavam-se uns aos outros no ringue, o guarda-redes Jim Craig foi procurar o seu pai. Em 1992, Craig disse que ainda recebia 600 cartas de fãs a cada ano.

Em 1999, a revista Sports Illustrated considerou o "Miracle On Ice" como o acontecimento desportivo do século XX.  



Quando os Jogos Olímpicos de Inverno regressaram aos Estados Unidos em 2002 em Salt Lake City, foram os membros da selecção de hóquei no gelo no 1980, vestidos com os seus equipamentos, que acenderam a chama olímpica. Nesses mesmos Jogos, Herb Brooks treinou a equipa americana que ganhou a medalha de prata, a primeira medalha americana no hóquei no gelo masculino desde 1980. 
Infelizmente, Herb Brooks faleceria num acidente de viação no ano seguinte. Em 2005, o ringue onde se desenrolou o torneio olímpico de 1980 recebeu o nome de Herb Brooks Arena.



Logo em 1981, houve um telefilme sobre o "Miracle On Ice" com Steve Guttenberg no papel de Jim Craig. Em 2004, a Walt Disney produziu o filme "Miracle" com Kurt Russell no papel de Brooks.





O último minuto do jogo EUA-URSS:


Reportagem do Olympic Channel:




Trailer "Miracle" (2004):








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